"Temos esta Esperança como âncora da alma, firme e segura, a qual adentra o santuário interior, por trás do véu, onde Jesus que nos precedeu, entrou em nosso lugar..." (Hebreus 6.19,20a)
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domingo, 15 de março de 2020

A IGREJA DO DIABO - Machado de Assis (um conto)

CAPÍTULO I -
DE UMA IDÉIA MIRÍFICA 

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. - Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul. 

II - ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor. - Que me queres tu? perguntou este. - Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. - Explica-te. - Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros... - Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura. - Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece? - Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor, - Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental. - Vai - Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra? - Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja? O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse: - Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura... - Velho retórico! murmurou o Senhor. - Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos... Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo. - Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez? - Já vos disse que não. - Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão? - Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega. - Negas esta morte? - Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los... - Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai! Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra. 

III- A BOA NOVA AOS HOMENS 

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas. - Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele. Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana ... Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria. 

IV - FRANJAS E FRANJAS 

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo. Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro. Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: - Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

INCITAÇÃO DA MENTE À CONTEMPLAÇÃO DE DEUS por Anselmo de Cantuária (1078)

Eia, vamos, pobre homem! Foge um pouco às tuas ocupações, esconde-te dos teus pensamentos tumultuados, afasta as tuas graves preocupações e deixa de lado as tuas trabalhosas inquietudes. Busca, por um momento, a Deus e descansa um pouco nele. Entra no esconderijo da tua mente, aparta-te de tudo, exceto de Deus e daquilo que pode levar-te a ele, e, fechada a porta, procura-o. Abre a ele todo o teu coração e dize-lhe: “Quero teu rosto; busco com ardor o teu rosto, ó Senhor” (Salmo 27.8).

Eis-me, ó Senhor meu Deus, ensina, agora, ao meu coração onde e como procurar-te, onde e como encontrar-te. Senhor, se não estás aqui, na minha mente, se estás ausente, onde poderei encontrar-te? Senhor, se estás por toda parte, por que não te vejo aqui? Certamente habitas uma luz inacessível. Mas onde está essa luz inacessível? E como chegar a ela? Quem me levará até lá e me introduzirá nessa morada cheia de luz para que ali possa enxergar-te?

Nunca te vi, ó Senhor meu Deus. Senhor, eu não conheço o teu rosto. Que fará, ó Senhor, que fará este teu servo tão afastado de ti? Que fará este teu servo tão ansioso pelo teu amor e, no entanto, lançado tão longe de ti? Anela ver-te, mas teu rosto está demasiado longe dele. Deseja aproximar-te de ti, mas a tua habitação é inacessível. Arde pelo desejo de encontrar-te, e não sabe onde moras. Suspira só por ti, e não conhece o teu rosto. Ó Senhor, tu és o meu Deus e o meu Senhor, e nunca te vi. Tu me fizeste e resgataste, e tudo o que tenho de bom devo-o a ti; no entanto, não te conheço ainda. Fui criado para ver-te, e até agora não consegui aquilo para que fui criado.

(…) E tu, Senhor, até quando, até quando, ó Senhor, ficarás esquecido de nós? Até quando conservarás o teu rosto afastado de nós? Quando iluminarás os nossos olhos e nos mostrarás teu rosto? Quando voltarás a nós? Olha para nós, ó Senhor. Escuta-nos, ilumina os nossos olhos, mostra-te a nós. Volta para junto de nós, a fim de termos, novamente, a felicidade, pois, sem ti, só há dores para nós. Tem piedade de nossos sofrimentos e esforços para chegar a ti, pois, sem ti, nada podemos. Convida-nos, ajuda-nos, Senhor. Rogo-te que o meu desespero não destrua este meu suspirar por ti, mas respire dilatado meu coração na esperança. Rogo-te, ó Senhor, consoles o meu coração amargurado pela desolação. Suplico-te, ó Senhor, não me deixes insatisfeito após começar a tua procura com tanta fome de ti. Famélico, dirigi-me a ti: não permitas que volte em jejum. Pobre e miserável que sou, fui em busca do rico e misericordioso: não permitas que retorne sem nada, e decepcionado. E se suspiro antes de comer, faze com que eu tenha a comida após os suspiros.

Ó Senhor, encurvado como sou, nem posso ver senão a terra: ergue-me, pois, para que possa fixar com os olhos o alto. As minhas iniquidades elevaram-se por cima da minha cabeça, rodeiam-me por toda parte e me oprimem como um fardo pesado. Livra-me delas, alivia-me desse peso, para que eu não fique encerrado como num poço. Seja-me permitido enxergar a tua luz, embora de tão longe e desta profundidade. Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro. Pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares. Que eu possa procurar-te desejando-te, e desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te amando-te, e amar-te ao te encontrar.

Ó Senhor, reconheço e te rendo graças por teres criado em mim esta tua imagem, a fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas ela está tão apagada em minha mente por causa dos vícios, tão embaciada pela névoa dos pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a fizeste, a menos que tu a renoves e a reformes. Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade. De maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, se não cresse, não conseguiria compreender.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

JESUS, O DEUS MENINO por Ed René Kivitz

"Todo menino quer ser homem.

Todo homem quer ser rei.


Todo rei quer ser Deus.

Só Deus quis ser menino".


Essas palavras de Leonardo Boff ganharam meu coração nesse Natal. Imediatamente lembrei o que a Bíblia diz sobre Jesus menino:

"Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz". Isaías 9.6

"O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará". Isaías 11.6

"Mas quando os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei viram as coisas maravilhosas que Jesus fazia e as crianças gritando no templo: "Hosana ao Filho de Davi", ficaram indignados, e lhe perguntaram: "Não estás ouvindo o que estas crianças estão dizendo? " Respondeu Jesus: "Sim, vocês nunca leram: ‘dos lábios das crianças e dos recém-nascidos suscitaste louvor'?" Mateus 21.15,16, citando o Salmo 8.2

"Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: "Quem é o maior no Reino dos céus? " Chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus". Mateus 18.1-4

"O povo também estava trazendo criancinhas para que Jesus tocasse nelas. Ao verem isto, os discípulos repreendiam os que as tinham trazido. Mas Jesus chamou a si as crianças e disse: "Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele". Lucas 18.15-17

Ouvi  Jesus  convidando: “Torne-se menino. Eu fui menino”.

Perguntei: Por que a criança é o paradigma daquele que enxerga, discerne, experimenta e participa do reino de Deus?

Os estudiosos da Bíblia sugerem duas possibilidades. A primeira é que as crianças representam as virtudes que Deus espera ver nos adultos, como pureza, simplicidade, ingenuidade. Mas não é menos verdadeiro que essas são mais propriamente características que devem ser deixadas para trás do que virtudes que devem ser desenvolvidas. Paulo, apóstolo, diz que “não devemos ser como meninos imaturos” (Efésios 4.11-16), e que a vida adulta exige o desapego das coisas de menino (I Coríntios 13.11). Jesus também ensinou que ingênuos não sobrevivem no meio de lobos, e por isso devemos ser “simples como a pomba e prudentes como a serpente” (Mateus 10.16). Quanto à pureza das crianças, convenhamos, todas elas sabem ser egocêntricas e são naturalmente manipuladoras e agressivas quando se trata de fazer valer suas vontades. Você pode dizer que aprendem com os adultos, mas aprendem rápido, de modo que atribuir grandeza moral às crianças é sim ingenuidade. Virtude exige maturidade, disciplina, esforço, sofrimento – crescemos porque padecemos.

Outra possibilidade de interpretação para o fato de ser a criança o modelo para quem deseja viver no reino de Deus é que ela simboliza os pequeninos. “Deixai vir a mim os pequeninos” significaria “não impeçam que os que sofrem se acheguem a mim”. Jesus ensinou que os que têm fome, sede, estão doentes e injustamente encarcerados são os pequeninos a quem servimos sem saber que agimos em favor do próprio Cristo (Mateus 25.40). Mas também é verdade que Jesus não foi menino no sentido de ser vítima das circunstâncias e das contingências. Jesus padeceu voluntariamente, com lucidez, ciente do propósito de seu sofrimento, que enfrentou com singular coragem e grandeza de espírito.

O contraste entre homem, rei, Deus e menino perdurou no meu coração e minhas perguntas não foram respondidas pelos estudiosos da Bíblia. Mergulhei no silêncio e esperei que a Palavra viva encontrasse o caminho do meu coração e respondesse minhas perguntas: Por que devo ser menino? o que significa se fazer menino? de que maneira Deus foi menino?

Duas verdades explodiram dentro de mim. A primeira, a respeito da condição da criança. A segunda, a respeito da qualidade de relação própria da criança.

Imaginei uma conversa entre as Pessoas da Santíssima Trindade ocorrida na eternidade. Jesus olha para o Pai e diz: “Eu me esvazio, abro mão das minhas prerrogativas divinas, e mergulho na mais vulnerável condição humana. Vou ao ventre de uma mulher. Vou ao colo e ao seio de Maria. Aceito me fazer menino”.

O ato voluntário de Jesus implica a disposição de colocar-se sob o cuidado alheio. Uma criança, ou recebe cuidado, ou morre. Dos recém nascidos, o ser humano é o que exige maiores e complexos cuidados, e por mais tempo. Ser criança é ser vulnerável. Ser menino é ser dependente do pai, da mãe e tantos outros cuidadores. O ato de Jesus implica dizer ao Pai: “Eu me entrego absolutamente aos teus cuidados. Abandono-me em tuas mãos. Fico à tua disposição. Inteiramente dependente do teu amor. Completamente à mercê do teu caráter justo e bom”.

Lembrei de quantas vezes ao longo desse ano me percebi como criança encolhida em posição fetal, acolhida na palma da mão de Deus, minha manjedoura. Não me acovardei, não fugi da vida, não abri mão das minhas responsabilidades, não deixei de encarar o ônus que o sagrado direito de viver impõe. Apenas admiti minha finitude, minha impotência, minha incapacidade e meus limites diante das cruéis e sublimes dimensões da existência. As injustiças das sociedades humanas marcadas pela destruição e ganância, e a maravilha do universo em expansão me mostraram meu real tamanho, e me fizeram orar suplicante. O peso da maldade contra mim, a vergonha do mal que me habita, a inconstância dos meus pensamentos e sentimentos, a perplexidade em momentos de confusão e conflitos, a impotência diante dos paradoxos da vida, as demandas dos que me buscam clamando por socorro, me fizeram muitas e muitas vezes correr para as mãos de Deus e me entregar em absoluta dependência, como um menino que se derrama no colo do pai, despido de qualquer vergonha por ser ainda menino.

Sei que sou homem. Sei que sou rei. Sei que o Espírito de Deus habita em mim. Mas sei que sou menino. Não me ofendo quando ouço meu Pai dizer que não sou capaz de sustentar a existência com minhas próprias forças, encarar o mundo com minha própria sabedoria, resolver a vida com minha pretensa onipotência. O estado de criatura, e o sentimento de dependência não me causam revolta. A consciência de ser “homem insuficiente” me coloca de joelhos. Na verdade, me faz correr repetidas vezes para o refúgio seguro dos cuidados do meu Pai Celestial.

Essas imagens trouxeram para mim a lembrança de que assim Jesus nos ensinou a orar: Abba, Abba Pai. Oração é palavra do afeto. Abba é o balbuciar da criança que ainda não aprendeu a falar. Abba é a expressão da criança que sabe quem é seu pai, mas não sabe nada a respeito dele. Abba é a palavra da intimidade supra racional e anterior a qualquer elaboração de raciocínio e valoração. Abba é o impulso da criança que, diante de tantos braços estendidos e faces convidativas, sabe exatamente o colo ao qual deve se entregar. Esse é o meu pai, aqui estou seguro, aqui é o meu lugar, diz a criança que sabe do seu Abba.

Carrego comigo mais perguntas do que respostas, sou como Riobaldo, “quase de nada não sei, mas desconfio de muita coisa”. Mas nada me impede de crer. Sei dos argumentos contra a fé, enxergo as mazelas da religião, conheço cada canto do labirinto da dúvida. Mas nada disso me impede de crer. Minha relação com o Abba prescinde da lógica, pois repousa no afeto. Há muita que desconheço. Mas sei que tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada não me separam do afeto do Abba. Sei que "nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação é capaz de me separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, meu Senhor".

Ouvi Jesus convidando: “Seja menino. Eu fui menino”. E então compreendi o que ele me dizia: “Entregue-se completamente aos cuidados do Abba, e nunca, nunca, nunca, em tempo algum, e por qualquer razão, duvide enquanto Ele sussurra ao seu ouvido: Você é meu filho amado, em quem eu tenho prazer”.

Então respondi em oração.

Eis-me aqui, Abba, disposto a crescer e ser homem à imagem de teu filho Jesus.
Eis-me aqui, Abba, disposto a ser rei, para que tua vontade seja feita na terra como no céu.
Eis-me aqui, Abba, ansioso para participar de tua natureza divina.
Mas, verdadeiramente, eis-me aqui, Abba, menino, completamente entregue ao teu cuidado, vivendo no teu amor.
Eis-me aqui, Abba, o meu coração não é orgulhoso e os meus olhos não são arrogantes. Não me envolvo com coisas grandiosas nem maravilhosas demais para mim. Acalmei e tranqüilizei a minha alma. Sou como menino recém-amamentado por sua mãe. A minha alma é como essa criança. Somente em Ti está a minha esperança, desde agora e para sempre!

Ed René Kivitz


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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

OFICINA DE VIDAS - Uma reflexão sobre discipulado por Carlos Moreira

"Os onze discípulos foram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes indicara. Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram. Então, Jesus aproximou-se deles e disse: “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os ema nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos". Mateus 28.16-20

Excelente reflexão sobre (para mim) a principal omissão e pecado da Igreja de Cristo, O DISCIPULADO.

Aproveitando e a reflexão, eu gostaria de obter algumas respostas acerca deste tema, é uma especie de pesquisa que me serviria para corroborar uma futura reflexão minha:

1- Você já foi discipulado por alguém, isto é acompanhado dia-a-dia por um mentor espiritual, em algum período da sua vida? (alguém que não somente lhe "evangelizou", mas levou com você a sua carga, lhe mostrou com sua vida, a Vida de Jesus).

2- Se foi, "quanto" da sua "herança espirtual" você credita a este relacionamento? Se não, você acha que isto lhe faz falta?

Eu, por exemplo, me lembro que aos meus treze anos de idade fui discipulado (somente por uma semana) no acampamento Palavra da Vida, pelo "conselheiro" Maninho. Vejo hoje, mais do que nunca, quanto aqueles dias foram importantes para minha formação espiritual.

Aos 14 e 15 anos de idade tive um professor de adolescentes na igreja que participava chamado Paulo "broa" (por causa de suas faces, um pouco redondas) que foi referência para mim, mas não foi um discipulador mas sim professor.

Aos 28, tive no meu dirigente de Decúria do Cursilho uma espécie de discipulador, mas muito mais pela sua boa vontade e dedicação. Éramos muito mais irmãos que compartilhavam, do que mentor e mentoreado.

Hoje, sabendo a importância deste tipo de relacionamento, procuro desenvolver amizades onde o discipulado ocorra; ora recebendo, ora sendo canal da Graça.

Infelizmente o discipulado é uma temática que não é levada a sério, penso ser esta a maior realização que uma pessoa pode fazer; primeiro ser discípulo de Cristo, depois, formar discípulos dEle.
BM
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Oficina de Vidas - Uma Reflexão sobre Discipulado

INTRODUÇÃO
Quem me conhece sabe o quanto eu gosto de carro. Oficina, então, nem se fala! Vá entender... Gosto de quase tudo que tem quatro rodas, mas o Jipe sempre foi o meu "xodó". Quando comprei o primeiro, passava horas com ele no mecânico. A coisa chegou a um estado tal, que Fabiana uma vez me disse que eu estava ficando mais tempo na oficina do que com ela em casa.

Sempre gostei de cuidar de carros e acabei desenvolvendo outra paixão na vida: cuidar de gente, mas é fato que se trata de coisas totalmente antagônicas. Carro se machuca, arranha, amassa, quebra uma peça, mas sempre tem jeito! Com grana e uma boa oficina pode-se até, num curto espaço de tempo, transformar uma velharia num hot rodes. Mas com gente é diferente. Gente quando "arranha", "amassa", ou "quebra" dá um trabalho enorme para "recuperar" e, não raras vezes, o problema é tão grave que a "perda é total".

Você já pensou numa oficina que cuidasse de vidas? Imagine o cliente chegando e sendo recebido pelo "mecânico" da alma que diria: "é patrão, vamos ter de arriar todo esse egoísmo, que já rodou bastante, e colocar no lugar dele dois litros de generosidade. Também vou ter de substituir essa mentira aqui, que como se pode ver já está bastante gasta, por aquela verdade ali, novinha em folha".

Que bom seria se fosse assim! Mas não é. Gente dá trabalho. Gente tem insegurança, insensatez, implicância, intemperança, intolerância, indolência, e tanta coisa ruim que agente só acredita que gente tem jeito porque agente é gente. E dá trabalho cuidar de gente; e como dá... Mas não há, nessa terra, tarefa que seja mais inspiradora e, no meu entender, que seja tão prioritária.

UMA "PAIXÃO" DENTRO DA PAIXÃO

Quando olho para Jesus, vejo essa verdade expressa em cada gesto e em cada palavra, pois, de fato, o Mestre gostava de gente. Gente doída, gente perdida, gente caída, gente excluída, gente que não se achava gente, gente que perdeu a referência do que era ser gente, gente que ignorava outra gente, gente de todo tipo e gente de toda gente.

Jesus vivia rodeado de pessoas. Com elas celebrou a vida e, por causa delas, a própria vida doou. Mas também experimentou nas suas relações a tristeza, a decepção e a dor. Para mim, a encarnação nada mais é do que Deus se deixando traduzir. Deus, agora, não é mais somente Deus, mas também é homem, bem próximo a nós. Podemos vê-Lo na esquina, entre uns e outros. Ele vai à casa do publicano e senta-se na roda dos pecadores. Conversa com a prostituta e come na mesa do coletor de impostos. Num momento está numa festa e, no outro, partilhando da dor solitária de um aleijado esquecido. Alegra-se no casamento, e chora no enterro do amigo, acolhe carinhosamente as crianças e expulsa o demônio que atormenta o endemoninhado. Verdadeiramente, a paixão daquele Galileu, era gente...

A vida de Jesus foi "gasta" com pessoas, sobretudo, os três últimos anos. Ele investiu todo o tempo de que dispunha na tarefa de fazer discípulos e, mesmo não tendo inventado o discipulado, discerniu-O como algo eficaz e aplicou-O como estratégia no ministério. No fundo, Ele criou uma oficina de vidas, pois, no que diz respeito à "consertar" gente, nunca houve ou haverá alguém melhor do que Jesus.

QUEBRANDO PARADIGMAS

Mais o que é mesmo discipulado? Ora, para tentar refletir um pouco sobre o tema, vou primeiro lhe dizer, o que eu acho que não é.

- Discipulado não é uma reunião de pessoas, mas a união de pessoas que se reúnem;
- Discipulado não é apenas abrir a casa para uma reunião, mas abrir a vida para a comunhão;
- Discipulado não é algo que acontece num dia da semana, mas, numa semana, todos os dias;
- Discipulado não termina quando a reunião acaba, pelo contrário, começa;
- Discipular não é passar a vida ensinando a bíblia, mas, no ensino da bíblia, passar a vida;
- Discipular não é apenas ensinar o que se aprende, mas viver o que se ensina;
- Discípulo não é alguém que quer apenas fazer discípulos, mas, antes de tudo, ser discípulo;
- Discípulo não é alguém que freqüenta a sua casa, mas aquele que partilha com você a sua vida;
- Discipulador não é aquele que apenas aceita o chamado do pastor, mas que compreende a comissão do Senhor;
- Discipulador não é um cargo que se assume na Igreja, mas um encargo que se assume na vida.

Tenho trabalhado com discipulado há mais de 20 anos. Neste período, no nosso país, observei, pelo menos, 4 "tipos" dele sendo implementados nas Igrejas.

1- DISCIPULADO COMO UM SISTEMA DE MANIPULAÇÃO
É um tipo de discipulado onde o discipulador exerce forte influência na vida de "seus" discípulos sendo que, em muitos casos, a relação torna-se, perigosamente, passional. O que à primeira vista poderia ser um fator positivo acaba tornando-se, num curto espaço de tempo, em algo extremamente nocivo. É que a dita "influência" vai muito além do que deveria ir, revelando-se, assim, uma invasão de privacidade. As pessoas têm de fazer a vontade do líder, sempre sob o suposto respaldo das Escrituras que, não raras vezes, são utilizadas totalmente fora de contexto.

Outra característica deste tipo de discipulado é ser um "sistema" fechado em si mesmo, com regras e rigores a respeito da vida e da conduta. O produto gerado a partir deste "caldo existencial" são vidas que existem sob o signo do medo, uma vez que, num ambiente como esse, torna-se quase impossível desenvolver de forma sadia a consciência na graça.

Conteúdos e verdades podem e devem ser repassados, primordialmente, através da vida, com respeito e amor, sempre olhando de forma reverente os "espaços" do outro, nunca perdendo a referência de que cada pessoa fará o seu próprio caminho na terra com Deus, pois será a partir dele que colherá a paz e o bem de cada dia.

2- DISCIPULADO COMO UMA ESTRATÉGIA DE MASSIFICAÇÃO
Muito do que acontece hoje, no mundo corporativo, achará guarida, em alguns anos, no mundo eclesiástico. Foi isto o que aconteceu na última década, com vários conceitos e processos empresariais sendo adicionados ao dia a dia das Igrejas.

Dentro desta perspectiva, os métodos voltados para o crescimento da membresia, mais especificamente através da estratégia de pequenos grupos, são os mais utilizados. A "visão" inicial, que chegou ao Brasil em meados dos anos 90, tinha como modelo a Igreja em Células da Colômbia que, num curto espaço de tempo, experimentou, através do discipulado, um crescimento numérico de milhares de pessoas.

Na versão tupiniquim, entretanto, o método sofreu o aditamento de programas e estratégias de planejamento e marketing com vistas a gerar melhores "resultados". O saldo, todavia, na maioria dos casos, tem sido desastroso, e não há como ser diferente, pois algo tão frio e impessoal, que visa apenas metas quantitativas, só pode gerar um adoecimento emocional e espiritual nas pessoas. Muitos são os casos dos que se queixam de estarem sendo submetidos a forte pressão para que metas de "multiplicação de membros" sejam alcançadas, como se a Igreja agora fosse uma empresa.

Jesus não nos mandou oprimir as pessoas, mas instou-nos a servi-las e amá-las. Nossa tarefa é encher o céu, e não a Igreja. Encher Igreja, sobretudo com gente vazia, é algo fácil. Com meia dúzia de "teologias da terra" o objetivo será alcançado. Mas, povoar o céu, com gente transformada, que compreende a graça e que viva de forma pacificada com Deus e com seus semelhantes, é tarefa apenas para quem quer ver o Reino de Deus crescer, e não o seu reino pessoal.


3- DISCIPULADO COMO UM PROGRAMA DE MANUTENÇÃO

Toda rotina gera fadiga, até mesmo nas coisas boas. Tenho observado que muitas comunidades se encantam com a possibilidade de começar um "programa" de discipulado. Analisam livros, escolhem métodos, criam uma "estrutura" e comissionam pessoas para a "execução da tarefa". Todavia, cedo-cedo, e, inevitavelmente, acabam se deparando com questões prementes tais como: o que é ser discípulo? O que se deve ensinar a eles? De que forma eles serão influenciados? Qual o objetivo deles estarem nas reuniões? A maneira de lidar com estas e outras questões, ao longo do tempo, definirá se a "coisa", como um todo, irá ou não rumar na direção de um "programa de manutenção".

O que é isto? É quando o discipulado, após alguns anos de funcionamento, torna-se apenas mais um "programa" da Igreja e, por isto, tem de ser mantido em funcionamento. Chega-se facilmente a esta situação quando a rotina se estabelece e o método se torna mais importante que a vida. Mesmo algo bom, como uma reunião caseira, com cânticos, orações, estudo e compartilhar, pode tornar-se algo extremamente "viciante", sem desdobramentos maiores, sem que as pessoas sejam de fato transformadas nos valores, conteúdos e caráter. Numa perspectiva mais ampla, o "programa" ou tenderá a se acabar, ou virará algo sem conseqüências práticas para a vida. Existirá sim, porém, cada vez mais, menos pessoas se interessarão por ele.

Jesus fez justamente o contrário, ou seja, transformou o método em algo prático e aplicável à vida. Jesus não chamou os discípulos para uma reunião na sua casa, nem para participarem de um estudo bíblico na sinagoga, nem mesmo para um grupo de comunhão aos sábados, dia reservado ao "sagrado". O convite foi para que pudessem experimentar o hoje, com todas as cores e intensidade de cada momento, na singularidade incomparável que há em cada dia. O chamado dizia respeito a se "provar" as dinâmicas da existência e, a partir delas, experimentar a verdadeira vida que deve ser sempre vivida em abundância.

4- DISCIPULADO COMO UM TEMA PARA MEDITAÇÃO
Quem já passou por um curso de pós-graduação sabe que um dos itens mais importantes para a formulação de uma tese é o arcabouço teórico, ou seja, o acréscimo ao texto principal do pensamento de diversos autores. Mas, uma boa tese, dificilmente se sustentará sem um "trabalho de campo", ou seja, sem as observações práticas que respaldem a teoria proposta. Pois bem, a mesma coisa pode ocorrer com o discipulado quando ele se transforma num tema para meditação, quase sempre contido nos objetivos de ensino da Igreja.

Com data de início e fim já demarcados - em alguns casos estabelece-se o tempo de três anos - o grupo passa a reunir-se com o objetivo de estudar um vasto cabedal de temas bíblicos e de autores diversos. Assim, o que deveria ser um estilo de vida a ser adotado, com pressupostos mais excelentes, acaba se transformando, apenas, num conjunto de conteúdos a ser "dissecado". Ao final do período proposto, cumpridas as "exigências", o membro do grupo torna-se um "discípulo graduado", ou seja, alguém que cumpriu uma espécie de jornada acadêmica, mas que, talvez, não tenha incorporado nenhuma prática à vida. Tiago nos adverte sobre o risco que há nesse proceder, quando nos diz: "tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos".Tg. 1:22.

Jesus não iniciou com seus discípulos um programa acadêmico fechado, mas, pelo contrário, criou uma grande escola da vida, aberta às pessoas, com sala de aula móvel, variando entre um lugar e outro, com conteúdos ensinados a partir das manifestações próprias da existência humana, sempre buscando harmonizar as pessoas ao mundo que as cercava e a Deus o Pai e Criador.

Mais afinal, então, o que é discipulado?

DISCIPULADO É A ESSÊNCIA DA MISSÃO.

Não há como entender algo sobre discipulado cristão se não olharmos para Jesus. Ele é a chave hermenêutica para todas as coisas e, a partir dEle, tudo pode ser discernido, até o próprio coração do Pai. É certo que as Escrituras Sagradas nos revelam alguns modelos de discipulado - Moisés e Josué, Elias e Eliseu, Paulo e Timóteo - mas a referência maior está no discipulado de Cristo.

Discipulado não é apenas um programa, apesar de ter etapas, nem um método, apesar de ter estratégias, nem mesmo um sistema, apesar de ter processos, mas é, antes de tudo, um estilo de viver para ser incorporado à vida. O ponto focal de tudo está no relacionamento. Jesus não chamou pessoas para manipular, nem criou estratégias para alcançar as massas e multiplicar "o bolo". Ele não estabeleceu uma rotina reciclável de entretenimento e nem fundou uma classe de estudos sistematizados. Tudo que aconteceu, aconteceu a partir da vida, nas relações travadas no dia a dia e nas oportunidades que foram surgindo a partir dos encontros humanos. Foi algo simples, mas extremamente poderoso.

Os vínculos e laços gerados, durante aqueles três anos de convivência com Cristo, foram tão profundos e marcantes que a vida daqueles que com Ele estavam nunca mais foi a mesma. Jesus ressuscitou, subiu aos céus, mas antes de sentar-se, definitivamente, à direita do Pai, esteve com Seus discípulos uma última vez, às margens do mar da Galileia. Na derradeira palavra do Senhor aos seus amigos, disse: "ide e fazei discípulos". E, de fato, eles foram...

Quando penso em tudo isto e olho para a grande comissão meu coração se enche de esperança e alegria. Sim, porque mesmo sem cursos, apostilas ou livros, mesmo sem recursos de fita K7, CD ou DVD, sem elaboração de estratégias, programas ou campanhas, os discípulos saíram pelo mundo anunciando as boas novas da salvação. De nada se fizeram acompanhar que não fosse vida. Sim, tudo se resumiu apenas a vida vivida com o Galileu, naqueles dias empoeirados na Palestina, onde a luz resplandeceu nas trevas de seus corações.


CONCLUSÃO

Discipulado é uma oficina de vidas! É uma tarefa árdua e que exige persistência. Muitas pessoas estão à nossa volta, todos os dias, precisando ser discipuladas. Algumas estão em nossa casa, outras no trabalho, ou na faculdade, e outras estão dentro da Igreja. Muitas delas acham que não precisam se submeter a isso, e outras, até que precisam, mas poucas serão as que tomarão uma decisão de ir além. Existe uma grande diferença entre precisar e querer e, isto, você verá por si mesmo...


O discipulador é um escultor do caráter de Cristo no caráter das pessoas. Ele é
alguém que entendeu que precisa ser uma referência na vida de outros a partir da vida que pulsa na sua própria vida. E isto leva tempo... E dá trabalho... Por isso, não espere moleza se quiser ser e fazer discípulos.

Jesus discipulou, de forma mais próxima, 12 pessoas. A Bíblia também fala dos 70, dos 120 e Paulo menciona os 500. Não sei quantos dá para formar numa vida, mas tenho a impressão de que, talvez, não sejam muitos. Se, todavia, nos empenharmos nesta tarefa, poderemos ver, ainda nessa geração, uma Igreja formada, em sua maioria, por discípulos do Senhor. Isso, posso lhe garantir, fará muita diferença...

Sola Gratia!

Carlos Moreira - www.carlosmoreira.com

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O SOFRIMENTO por Ariovaldo Ramos

Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos. Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias:
"Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem".
Mateus 2:16-18

Mais uma vez Deus se adianta à história humana: Ele sabe o que vai acontecer!

Mas, desta vez, a onisciência, que comunicou a forma, para evitar que o mal impedisse o avanço da história da salvação, agora, comunica o absurdo e a dor.

No texto, a nação de Israel, representada pela alusão à Raquel, esposa amada por Jacó, como a mãe da nação, é avisada do choro inconsolável.

Por que o Todo-poderoso nos informa da angústia, em vez de, simplesmente, impedi-la?

Por que tantos não culpados são abatidos pela maldade? O que acontece?

Antes da humanidade romper com a Trindade, viver, se o fruto da árvore da Vida fosse digerido, era para ser um fim em si mesmo. Viver viria a ser manifestar a imagem de Deus, para a glória de Deus. Nasceríamos para expressar Deus, e, portanto, para viver todo o crescimento e aventura que o conceito encerrava.

Depois da queda, viver passou a ser um meio; não é mais um fim em si mesmo. 

Depois da queda, nasceríamos para morrer, e sem nenhuma garantia ou previsão, sobre quanto tempo viveríamos. A morte estaria, desde o nascimento, em nós e fora de nós. A morte, que é sempre uma tragédia, é a inimiga que passaríamos a enfrentar diariamente.

A vida, após a queda, é um ambiente de sofrimento!

A vida, após a queda, é, de fato, o meio no qual Deus alcança os seres humanos, é o ambiente onde a salvação, em relação ao que a queda provocou, é oferecida; e, se recebida, a salvação inocula, no salvo, a vida que é um fim em si, cuja plenitude se dará na ressurreição do corpo.

Portanto, no que chamamos de nossa história de vida, enfrentamos e sofremos a maldade que, graças à nossa ruptura com o Deus do Universo, passou a fazer parte de nossa realidade, porque a maldade se tornou o princípio ativo da natureza humana.

Enfrentamos a maldade em nós, na realidade manipulada pelas mãos humanas, e naqueles que não enfrentaram a maldade em si.

A Trindade foi a primeira a ser atingida pela realidade da maldade, porque a Bíblia diz, que o sangue do Filho é conhecido, e efetivo, desde antes da fundação do mundo (1Pe 1.19-20).

Antes de tudo, e para que tudo pudesse existir, o Filho assumiu a cruz para enfrentar e vencer a maldade, que viria a ser a tônica da humanidade. E, graças a esse sacrifício, manifesto, na história, no Calvário, a Trindade pôde criar, manter e resgatar a sua criação. E, por isso, pôde, nesse ambiente, emprestar parte de sua bondade, para que a maldade não fosse o único tom da nossa vivência (At 14.17).

Esse sacrifício da Trindade, por meio do Filho, é uma ação do Deus, por sua graça. Esse ato divino, por sua graça, garante que a vida voltará a ser um fim em si mesma, isto é, voltará a ser o exercício da expressão da imagem do Deus.

Entretanto, enquanto o final não chega, sofreremos e enfrentaremos a maldade, que, por nossa queda, trouxemos à realidade.

A maldade não conseguiu, nem conseguirá interromper a história da salvação, o que era o seu objetivo; mas, sempre cobrará vítimas. Isto se tornou parte da condição humana. Muito inocente tombou até que o Cristo viesse, e muito inocente ainda tombará até que o Cristo volte.

Certo é, que, nenhum, dos que tombaram ou tombarão, viveu ou viverá em vão; ainda que tenha morrido, ou venha a morrer precocemente.

E o que foi e será vitimado pela maldade, de alguma forma, faz parte de todo o gemido da criação pela salvação da humanidade, pela redenção cósmica do Cristo (Rm 8.22).

Não quer dizer que a morte do inocente tenha sido necessária; ou que a vítima tenha sido salva por perecer de tal morte, pois, só o sacrifício do Cristo salva o ser humano. Quer dizer que o desfecho, de sua vida, teve a ver com tudo o que aconteceu na história da busca divina pelo que se havia perdido; porque fez parte do enfrentamento da maldade, capitaneado pelo Cristo.

A maldade, em nós, é, portanto, fruto do mau uso do arbítrio humano. A maldade é o ônus da humanidade em estado de queda.

O ato mau é consequência do livre curso da maldade.

Em cada um de nós, a maldade deve ser detida pela bondade que Deus, por sua graça, para garantir sobrevida à humanidade, nos emprestou; enquanto Deus faz avançar a historia da salvação, que culminará em novos céus e nova terra, onde habita a justiça.

Na sociedade, os homens bons devem enfrentar os homens maus. O efeito da maldade, a partir do ato humano, é proporcional ao poder permitido a este ser humano.

A Trindade não veio a nós para deter os homens maus, mas, para erradicar a maldade no ser humano, por meio do novo nascimento.

Enquanto a maldade não for erradicada da humanidade, homens bons e homens maus se defrontarão, quando os homens maus vencem, a injustiça prospera, quando os homens bons vencem, o que prospera é a justiça.

Homens bons não são pessoas destituídas da maldade, nem gente que não precise nascer de novo, mas, seres humanos que, por causa da deferência de Deus, por sua graça, procuram dar lugar à bondade emprestada por Deus.

Ao mencionar a profecia sobre o choro de Raquel, Deus não estava falando da inexorabilidade do mal, mas, do descaso para com os avisos de Deus.

Deus enviara os magos para despertar Israel, e toda a Jerusalém o soube, e se alvoroçou (Mt 2.3), mas, nada fez, e deixou o Cristo e os demais infantes à deriva da maldade, pondo em risco a história da redenção. Ecoou a fala de Deus à Isaías (Is 53.1): “Quem creu em nossa pregação?”

Provavelmente, a Jerusalém, alvoroçada, tenha sido dissuadida pelos líderes vaidosos, que não admitiam que Deus falasse, senão por eles. E os homens bons deram ouvidos aos homens maus.

Deus, então, salvou o Cristo e a história da salvação.
http://ariovaldoramosblog.blogspot.com.br/

terça-feira, 1 de outubro de 2013

NEM DENTRO NEM FORA por Ricardo Barbosa

Blaise Pascal (1623–1662), o grande físico, matemático e teólogo francês, em seus “Pensamentos”, falando sobre a grandeza do homem, afirma o seguinte: “Os estoicos dizem: Tornai a entrar dentro de vós mesmos; é aí que encontrareis o vosso repouso: e isso não é verdadeiro. Outros dizem: Saí e buscai a felicidade divertindo-vos: e isso não é verdadeiro. […] a felicidade não está nem em nós, nem fora de nós; está em Deus, tanto fora como dentro de nós”.

Tenho a impressão de que as tentações mais sutis nos são apresentadas aos pares: ou isto ou aquilo, ou dentro ou fora. Todas as vezes em que optamos por uma, somos levados a negar, ou a minimizar, a outra. Exemplo: Amamos a Deus para então obedecer-lhe ou obedecemos-lhe para então amá-lo? Servimos ao próximo porque esse é o nosso chamado ou precisamos primeiro sentir o chamado para então servir? O que é mais importante: A razão ou a emoção? A convicção ou o sentimento? 

A escolha entre um e outro, ou mesmo a tentativa de valorizar um em detrimento do outro, tem tornado a fé de muitos cristãos morta, levado inúmeros casamentos ao fim, comprometido a ética e a moral e contribuído com uma espiritualidade frágil e confusa. 

Quando Pascal afirma que “a felicidade não está nem em nós, nem fora de nós; está em Deus, tanto fora como dentro de nós”, ele não propõe um equilíbrio entre uma coisa e outra, mas uma compreensão completamente diferente. Ao afirmar que a felicidade está em Deus, ele muda não só o foco da discussão -- dentro ou fora --, mas também o eixo da discussão, afasta o “nós” e coloca “Deus”. 

Quando o apóstolo Paulo afirma que Deus fez convergir todas as coisas em Cristo (Ef 1.10), ele reconhece que em Cristo encontramos a síntese, a unidade, de todas as coisas. A felicidade não está nem dentro, nem fora de nós, mas nele. A verdade não é isso ou aquilo, mas ele. Em Cristo, o amor e a obediência são uma coisa só, a fé e as obras nunca estão dissociadas. As convicções e os sentimentos estão alinhados e a mente e as emoções não são realidades distintas e, muitas vezes, paradoxais. 

A fé que temos em Cristo nos revela um novo jeito de ser e de perceber as coisas. Em Cristo, Paulo considerava-se livre, mesmo estando acorrentado numa masmorra qualquer do Império Romano. A liberdade não era definida por viver desta ou daquela forma. Ele era tão livre a ponto de escolher ser escravo por amor à Igreja. A fé em Cristo nos confere uma nova identidade que não depende mais de nós, mas dele. Como disse Paulo, “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”. Quanto mais estou nele, mais me reconheço pleno e real. 

A vida do Filho estava no Pai. O Pai era a fonte integradora de todas as coisas. A violência do mundo não fazia sentido, mas a confiança e a entrega do Filho ao Pai fizeram com que seu amor pelo ser humano não fosse abalado pela violência que sofreu. Sua segurança ou alegria não eram internas ou externas, mas o próprio Pai. É somente por causa dessa compreensão que Jesus pode dizer, no momento mais crítico de sua existência: “Eu venci o mundo”. Aos olhos de todos, era um derrotado, mas não era assim que ele se via. Quanto mais eu me encontro em Cristo, mais livre e verdadeiro me torno. 

Quanto mais eu vivo nele e por ele, mais seguro me encontro. Minha alegria, confiança, felicidade, dignidade e meu reconhecimento não estão numa coisa ou noutra, nem dentro, nem fora, mas nele, que tudo me proporciona para minha plena realização. 

• Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de, entre outros, “A Espiritualidade, O Evangelho e a Igreja”.
http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/344/nem-dentro-nem-fora

sexta-feira, 10 de maio de 2013

UM DEUS SEM CURA PARA SI MESMO! por Caio Fábio


Se prevalecesse a ideia de que Deus criou e pronto, tendo depois que fazer ajustes à criação, conforme se crê que a Bíblia narre, teríamos que dizer que Deus não somente de fato se arrepende, como também que se arrependeu muitas vezes, e que, hoje, se arrepende todos os dias de haver feito o que fez como Criador.

O critério acima exposto não só é totalmente humano, limitado, linear e finito, como, também, é um atestado da inviabilidade de Deus como Criador e Pai segundo a lógica do homem.

Deus nunca se deu bem e Seus projetos parecem ter falhado!

Adão foi uma tragédia. Seu filho Caim de cara vira homicida. A descendência dele fez ainda pior. Depois veio a tal invasão “anjo-alienígena” descrita por Gênesis seis, quando os “filhos de Deus” tomaram as mulheres mais belas da terra e com ela geraram os Gigantes, os Nephilim. Então veio o Dilúvio. Noé sobrevive, mas de sua descendência logo surge um filho amaldiçoado: Cão, pai dos cananeus.

Outra vez o mundo se danou todo com extrema rapidez.

Então Deus suscitou Abraão, que foi lindo de fé, mas que gerou uma segunda descendência, com Hagar, e que é a descendência dos piores inimigos do povo da linha direta de Abraão: Isaque e seus descendentes: os filhos de Israel.

Israel, outra provisão divina para o mundo, tornou-se o que se tornou: pior dos que os povos antigos que o haviam precedido na terra da peregrinação de Abraão.

Então veio o Rei Davi, homem segundo o coração de Deus, mas que teve também coração para o que não deveria ter tido.

Assim, Israel se corrompe outra vez, só que agora numa sucessão de corrupção através dos Reis de Israel, começando com Salomão, filho direto de Davi.

Profetas são levantados. Utopias são prometidas caso Israel ande com Deus. Mas, dos profetas, ficamos conhecendo não as utopias proféticas [até hoje o leão e o boi não pastam juntos...], mas apenas a verdade dos profetas nos cumprimentos dos juízos vaticinados.

Assim, as profecias continuaram, as tragédias se sucederam, mas os profetas acabaram.

Então, veio o cativeiro para corrigir os idolatras filhos de Abraão.

Enfim, vem Jesus. Veio para o que era Seu, mas os Seus não o receberam. Surge uma outra comunidade: a Igreja.

Ora, a Igreja seria o novo Israel. É verdade que sempre se pode pensar na Igreja Invisível, pois, a Igreja visível apenas dá testemunho do fracasso de Deus como Arquiteto e Edificador.

Então, veio, da Igreja e sua influencia, o mundo Ocidental e tudo o que nele já se fez em nome de Deus e de Jesus.

Agora, mais do que nunca, temos todos os “agentes explícitos” de Deus na História em estado de desgraça: Israel é visto como um usurpador perverso e a Igreja é a comunidade da Promessa Corrompida.

O Pai não teria dado certo com Israel e o Filho e o Espírito teriam fracassado no Projeto Igreja!

Sim! A julgar pelo que os crentes sempre consideram o “caminho histórico e único de Deus”, Israel e a Igreja, temos que dizer que Deus não deu certo como Deus.

No trato com Seus filhos Ele já tentou de tudo.

Adão teve tudo, menos uma coisa, mas essa única coisa que ele não poderia foi justamente a coisa que ele quis contra tudo o que poderia.

Veio Seu Filho, mas foi morto, e os que nele creram, depois de um tempo, tornaram-se discípulos de si mesmos. Sim! Do que chamaram de “nós, a Igreja”; mas já não eram mais discípulos de Jesus.

Ora se os planos de Deus para consertar o mundo se limitam a Israel e à Igreja, então, creia meu amigo: Deus se danou nessa!

Desse modo, não me admira que os “ajudantes” de um Deus tão incompetente — pois, nesse caso, Deus pode ser tudo: Onipotente, Onisciente, Onipresente, mas é também Oni-Incompetente — estejam tentando criar uma teologia do dialogo entre Deus e o homem; e mais: criando certas limitações no softer de Deus, tornando-o mais incapaz, mais lento; e isto a fim de torná-lo menos Deus, e, assim, podermos explicar melhor Sua impossibilidade de fazer o melhor da e para a criação.

Sim! A História de Deus com Sua criação foi difícil até mesmo antes de o homem ser criado.

O tal “Querubim da Guarda”, acerca de quem pouco ou nada se sabe, veio a tornar-se diabo no meio da Assembléia Sublime. Deu tudo errado, segundo o padrão humano de avaliação.

Criou-se o homem. Mas o homem virou um diabo.

E, agora, o diabo do homem com o diabo que o homem nem sabe quem é, juntos, estão acabando o mundo.

Ora, já que não dá para criar um outro homem e nem um outro diabo, pois, tanto o homem quanto o diabo não estão ao dispor do homem para mudar, então, somente se criando um “outro Deus”, para ver se a gente dá uma reviravolta pelo menos filosófica no “Problema Deus” ou no “Problema de Deus”.

O Não-Deus Budista, em um tempo como o nosso, leva imensa vantagem; pois, nunca prometeu nada na Terra; nunca teve uma terra, um povo, uma nação santa; nunca teve relações pessoais; nunca disse nada; nunca dele se disse que soubesse qualquer coisa no futuro; e apenas estimulou a que se sofresse pouco, pela via da desistência das paixões do ego; e que também se fosse compassivo, mas sem passionalidades nos afetos.

Esse ‘Deus’ que não é um Deus por definição Ocidental, não tem problemas. De fato, somente não sugiro que o pessoal cristão angustiado com o ‘Deus dos cristãos’ e da ‘Igreja’ se converta a “Ele”, pois, em razão do acesso logorreico dos viciados nas cerebrações e nas discussões sobre Deus, eles ficariam entediados, pois, tal “Deus” não tem papo, e nem serve a um projeto de Teologia Relacional; do contrario, já seria um Deus “prontinho” para eles. Que pena!

Ora, o que se impõe concluir é que o Deus da Igreja não tem o que dizer ao mundo, a começar do fato que seu ultimo projeto, a ‘Igreja’, não deu certo entre os homens também.

Desse modo, a oração Sacerdotal de Cristo, em João 17, no máximo tem seu cumprimento apenas nos ambientes da subjetividade inverificável, mas não na História verificável.

Assim, a Oração de Jesus ficou frustrada historicamente falando, posto que seja inegável que Jesus desejasse que Seus seguidores, a Igreja, se tornasse uma comunidade humana de amor, verdade, justiça e paz; e, como sabemos, isso nunca aconteceu de modo consistente e continuo na História. Falhou também.

Pedro disse na sua 2ª epistola que seria esse tipo de frustração com Deus, e, também, com a imutabilidade das situações desde o principio, desde Adão, o poder que faria muita gente se cercar de mestres procurando uma saída, um outro Deus; ou, quem sabe: um Deus que mude o paradigma da expectativa em relação a Ele, pois, de acordo com o que se pode medir, Deus teria falhado.

Na realidade Deus não tem nada a ver com tudo o que se diz Dele ou tampouco com o “Retrato Falado” que Dele os homens têm recebido através da “Igreja”.

O desconhecimento da “Igreja” em relação a Deus e a Jesus é tão grande, que se Ele se manifestar mesmo, os crentes vão repreendê-Lo em “nome de Jesus”.

Deus não está com problemas, e, tampouco, nos deu esse “manualzinho divino” que hoje se pretende ou precisa reformar a fim de adequar Deus aos tempos.

Na realidade, dado ao que o mundo apresenta, Deus virou o maior problema do mundo!

É em nome de Deus que os maiores ódios permanecem. É nome de Deus que se pode vir a explodir a Terra. É nome de Deus que se fez tudo o que se fez do progresso que hoje ameaça destruir o mundo. E mais: Deus é culpado por tudo o que não dê certo!

O mais simples para Deus, que deve andar de Saco Divino Cheio de tudo o que a Ele se atribui, discute, sugere, demanda ou Dele se “explica” — seria acabar com o homem; posto que a Natureza não tenha problemas para além de nós, a terrível “jóia da criação”.  

Deus, porém, não tem cura!...

Sofre do amor de Oséias, o corno. Sofre a dor do Pai do Pródigo e a do Pai do irmão que tinha inveja do pecado do outro. Sofre como o Pai que não é reconhecido nem com DNA pelos filhos.

Sofre e segue... Não dá para explicar. Ele mesmo não se explica. Apenas manda não filosofar e crer. Crer que Ele sabe o que está fazendo, embora eu não entenda nada.

Sim! Ele mesmo disse que o que nos aguardaria seria justamente o que chegou. Mas garante que no final veremos o sentido de tudo, se apenas crermos, confiarmos e não nos cansarmos do amor e do bem.

Entretanto, olhando com os olhos dos Teólogos Psicanalistas de Deus, teríamos que dizer:

Deus é um Pai incorrigível, que acostumou mal a Seus filhos, que é co-dependente da humanidade, mas errou muito querendo acertar. Agora, porém, chegou a hora de Deus crescer e dialogar com os teólogos e com a humanidade, pois, sozinho, Deus nada conseguiu; pode ser com uma consultoria humana Ele se saia melhor; posto que até agora, usando critérios humanos de qualquer natureza, teríamos que dizer que Deus não deu certo. Mas isso não seria justo com Ele, que, afinal, se esforçou tanto!

Jesus falou deste dia, quando indagou afirmando:

Porventura, quando vier o Filho do Homem, encontrará fé na Terra?

Deus não está assustado. Mas o homem está morrendo de medo!

Ora, não posso falar pelo mundo, mas por mim eu posso e digo:

Se a única criação de Deus tivesse sido eu, apesar de mim mesmo, eu diria e digo: Deus deu certo em mim!

Nele, que nunca se arrependeu e que nunca teve de remendar nada, embora eu não compreenda coisa alguma,

Caio
19 de janeiro de 2009
Lago Norte
Brasília
DF