"Temos esta Esperança como âncora da alma, firme e segura, a qual adentra o santuário interior, por trás do véu, onde Jesus que nos precedeu, entrou em nosso lugar..." (Hebreus 6.19,20a)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

ONDE ESTÁ O AMOR, DEUS TAMBÉM ESTÁ por Liev Tolstói

Havia numa cidadezinha um sapateiro chamado Mikail Avdeievitch. Morava num porão cuja única janela dava para a rua, na altura do chão. Embora visse apenas os pés de quem passava pela rua, Mikail conhecia todas as pessoas pelos sapatos que usavam. Como já era velho e competente em seu trabalho, era raro um par de botas que não houvesse passado por suas mãos, fosse para um remendo, uma meia-sola ou para colocar um novo cano. Assim, era comum ver passar pela janela uma obra sua.

Mikail estava sempre muito ocupado, pois trabalhava com perfeição, usava material de boa qualidade, não cobrava caro e entregava no prazo prometido. Por isso todos o estimavam e nunca lhe faltava serviço.


Sempre fora um homem bom mas, ao envelhecer, começou a se preocupar com sua alma e queria se aproximar de Deus. Sua mulher tinha morrido quando ele ainda era aprendiz, deixando um filho de três anos. Haviam tido outros filhos antes, mas todos tinham morrido. Ao se ver só com o menino pensou em mandá-lo para a casa de um tio, na aldeia, mas ponderou: “Será muito triste para o pequeno Karp viver longe de mim. É melhor ficar mesmo comigo”.

Pouco tempo depois, despediu-se do patrão e abriu sua própria oficina. Deus, porém, não velava muito por seus filhos. Quando o que lhe restara se tornou rapaz e começou a ajudá-lo, adoeceu e morreu em uma semana.

Mikail enterrou o filho. A perda feriu-lhe de tal modo o coração que chegou a murmurar contra a justiça divina. Sentia-se tão infeliz que implorava a Deus que lhe tirasse também a vida. Censurava o Senhor por não levar a ele, que já era velho, em lugar do filho único tão querido, e deixou de ir à igreja.

Um dia, na época da Páscoa, chegou à casa do sapateiro um conterrâneo seu que há oito anos percorria o mundo como peregrino. Conversaram muito tempo e Mikail se queixou amargamente da sua desgraça.

- Perdi o desejo de viver, agora só espero a morte. Peço a Deus que me leve, pois não tenho mais ilusões na vida.

- Não fale assim, Mikail. Os homens não devem julgar a vontade do Senhor, pois suas razões estão acima do nosso entendimento. Se Ele decidiu que seu filho morresse e você vivesse, tem que ser assim. Você se desespera porque só quer viver para sua própria felicidade.

- E para que viver, se não para isso? - perguntou o sapateiro.

- É preciso viver para Deus. É ele quem dá a vida e para ele devemos viver. Quando entender isso, seu sofrimento terminará e você suportará tudo com paciência e resignação.

Mikail ficou calado por um momento, e disse:

- E como se vive para Deus?

- Como Cristo ensinou. Você sabe ler? Pode aprender nos Evangelhos. Na Sagrada Escritura você encontrará resposta para todas as perguntas.

Essas palavras calaram fundo no coração de Mikail. No mesmo dia comprou um exemplar do Novo Testamento, impresso em letras bem grandes, e começou a ler.

Pretendia pegá-lo somente nos dias de folga, mas o texto lhe trazia tal consolo à alma que foi adquirindo o hábito de ler algumas páginas todos os dias. Às vezes se entretinha de tal modo que só deixava o livro quando o óleo da lâmpada terminava.

Lia todas as noites. À medida que progredia na leitura, ia compreendendo com maior clareza o que Deus exigia, como viver para Deus, e a alegria penetrava docemente em sua alma.

Acostumado a ir se deitar gemendo e suspirando com a lembrança dos filhos, agora dizia:

- Glória a Deus, glória ao Senhor, pois essa foi a sua vontade.

A vida do sapateiro transformou-se completamente. Antes, nos dias de festa, ia para a taberna tomar chá e, por vezes, um gole de vodca com os amigos. Nessas ocasiões saía da taberna não propriamente embriagado, mas um tanto eufórico, e dizia bobagens, chegava a insultar quem encontrava no caminho.

Agora tudo mudara. Sua vida transcorria em harmonia e paz. Punha-se a trabalhar ao amanhecer e, terminado o dia, colocava a lâmpada sobre a mesa, tirava o livro da prateleira e sentava-se para ler. Quanto mais lia, melhor compreendia e uma suave serenidade envolvia-lhe a alma.

Uma noite estendeu a leitura até bem tarde e, chegando ao capítulo VI do Evangelho de São Lucas, encontrou os seguintes versículos:

“Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra. Ao que te tirar o manto, não o impeças de levar também a túnica. Dá a todo aquele que te pede; e ao que leva o que é teu, não lhe tornes a pedir. O que quereis que vos façam os homens, fazei-o também a eles”.

A seguir, leu que o Senhor disse:

“Por que me chamais: Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos digo? Todo aquele que vem a mim, que ouve minhas palavras e as põe em prática, eu vos mostrarei a quem ele é semelhante. É semelhante a um homem que, edificando uma casa, cavou profundamente e pôs os alicerces sobre a rocha. Vindo uma inundação, investiu a torrente contra aquela casa e não pôde movê-la, porque estava bem edificada. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou a sua casa sobre a terra, sem fundamentos. Investiu a torrente contra ela e logo caiu, e foi grande a ruína daquela casa.”

Ao ler essas palavras, seu coração se inundou de alegria. Deixou os óculos sobre o livro e apoiou os cotovelos na mesa, imerso em reflexão. Comparou seus próprios atos a essas palavras, e disse:

- Minha casa está fundada sobre rocha ou sobre areia? Seria bom se estivesse apoiada na rocha. A felicidade nos domina quando estamos em paz com a consciência, procedendo como Deus quer. Quando nos esquecemos de Deus podemos cair outra vez em pecado. Continuarei como estou, pois sinto que é bom. Que Deus me proteja!

Mergulhado nesses pensamentos, resolveu ir se deitar. Mas relutava em largar o livro e começou o sétimo capítulo. Leu a história do centurião, a do filho da viúva e a resposta de Jesus aos discípulos de São João. Chegou ao trecho em que o rico fariseu convidou Jesus para ir à sua casa, onde a pecadora ungiu-lhe os pés e os lavou com suas lágrimas e Ele perdoou-lhe os pecados, e leu ainda:

“E voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa, não me deste água para os pés; ela, com as suas lágrimas me banhou os pés, e enxugou-os com os cabelos. Não me deste o ósculo da paz; porém ela, desde que entrou, não cessou de beijar os meus pés. Não ungiste minha cabeça com bálsamo, porém esta ungiu com bálsamo os meus pés.”

Ao ler esse versículo, Mikail pensou: “Não lhe deu água para os pés, não o beijou, não ungiu a cabeça dele com bálsamo...” Tornou a tirar os óculos, colocou-os sobre o livro e voltou às reflexões. “Aquele fariseu deve ter sido como eu. Ele também só pensava em si mesmo - tomar o seu chá, estar agasalhado, confortável, nem um pensamento para o hóspede. Cuidava de sua vida e nem pensava no conforto do convidado. E quem era esse convidado? O próprio Deus! Se Ele viesse me visitar, eu faria a mesma coisa?”

Mikail apoiou a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa e, sem se dar conta, adormeceu.

- Mikail! - disse uma voz de repente, sussurrando em seu ouvido. Despertou assustado. - Quem é? - perguntou.

Olhou em volta, olhou para a porta, não viu ninguém. A voz tornou a chamar, desta vez com mais clareza.

- Mikail, Mikail! Olha para a rua amanhã, pois eu virei.

Mikail levantou-se da cadeira, esfregando os olhos, sem saber se ouvira as palavras num sonho ou acordado. Apagou a lâmpada e foi dormir.

No dia seguinte levantou-se antes do amanhecer, fez suas orações e acendeu o fogo para preparar a sopa de repolho e o mingau. Mantendo acesa a chama do samovar, vestiu o avental e sentou-se junto à janela para trabalhar.

Não conseguia afastar o pensamento do que acontecera na véspera, sem saber se fora uma alucinação ou se alguém falara realmente.

- São coisas que acontecem na vida - disse a si mesmo.

Continuava a trabalhar, espiando de vez em quando pela janela e, quando passavam botas desconhecidas, levantava-se para ver o rosto da pessoa.

Passou um carregador calçando botas novas de camurça, passou um velho soldado do tempo de Nicolau, com botas de cano alto tão velhas e remendadas quanto ele próprio. Esse soldado chamava-se Stepanovitch. Morava na casa de um comerciante da vizinhança, que o acolhia por caridade. Para dar-lhe uma ocupação condizente com a idade avançada, encarregara-o de ajudar o porteiro.

Stepanovitch parou em frente à janela e, com uma pá, começou a tirar a neve da rua. Mikail olhou para ele e continuou a trabalhar.

- Sou mesmo um tolo - disse ele, rindo de si mesmo. - Stepanovitch está limpando a neve e imagino que Cristo vem me visitar. Estou delirando. Estou louco.

Mal tinha dado dez pontos, porém, voltou a olhar pela janela e viu a pá encostada à parede e o velho soldado tentando se aquecer. “Esse infeliz está muito velho - pensou Mikail. - Já não tem forças para tirar a neve. Uma xícara de chá lhe faria bem. E o samovar está fervendo.”

Cravou a sovela no tamborete, levantou-se, pôs o samovar na mesa, colocou mais água e deu uma pancadinha na janela. Stepanovitch virou-se. Mikail fez-lhe um sinal e foi abrir a porta.

- Entre. Venha se aquecer, você deve estar com frio.

- Valha-me Deus! Muito frio! Os ossos chegam a doer - disse o velho.

Sacudiu a neve dos pés, para não sujar o chão e quase caiu ao entrar, tão trôpego estava.

- Não se preocupe com a neve nos pés. Vou ter mesmo que varrer o chão; não faz mal sujá-lo. Venha, vamos tomar um chá.

Mikail serviu duas xícaras de chá escaldante e deu uma ao hóspede. Derramou um pouco no pires e soprou para esfriá-lo.

Ao terminar, o soldado colocou a xícara emborcada no pires e, em cima dela, o resto do tablete de açúcar. Agradeceu ao sapateiro, mas estava claro que tomaria de bom grado mais uma xícara do chá quente.

- Tome mais - disse Mikail, enchendo de novo as duas xícaras. A cada gole, olhava pela janela.

- Está esperando alguém? - perguntou o convidado.

- Se estou esperando alguém? Tenho vergonha de dizer a quem espero. Nem sei se tenho razão para esperar ou não, mas ontem à noite ouvi uma coisa que não me sai da cabeça. Se foi verdade ou fantasia, não sei. Sabe, meu amigo, ontem à noite eu estava lendo o Evangelho... Jesus sofreu muito entre os homens! Já ouviu falar nisso, não?

- Sem dúvida, já ouvi falar, mas sou ignorante, não sei ler...

- Pois eu estava lendo a história de Jesus na Terra e cheguei à parte em que ele foi à casa de um fariseu que não o recebeu bem... Depois fiquei pensando como seria possível não receber bem Jesus Cristo. Se acontecesse a mim, nem sei o que faria em sua honra! Mas o fariseu não o tratou bem. Enquanto pensava nessas coisas, adormeci. De repente, ouvi alguém dizer meu nome. Acordei, e parecia que alguém sussurrava: “Espere, que eu virei amanhã.” Disse duas vezes seguidas. E por incrível que pareça, apesar de ter vergonha de acreditar nisso, estou esperando a visita do Senhor!

O soldado balançou a cabeça sem nada dizer, terminou de beber o chá e emborcou a xícara, mas Mikail tornou a enchê-la.

- Tome mais, o chá faz bem. Acho que o Senhor nunca rejeitou ninguém, quando andava pelo mundo. Andava com os humildes, visitava os pobres. Os discípulos eram gente simples como nós, pescadores, artesãos. “O que se exalta será humilhado e o que se humilha será exaltado... Chamais-me Senhor e eu vos lavo os pés; aquele que quiser ser o primeiro deve ser o servidor dos demais. Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.”

Stepanovitch tinha esquecido sua xícara de chá. Era um velho sensível. Ouvindo as palavras de Mikail, as lágrimas corriam pelo seu rosto.

- Vamos, tome mais - disse o sapateiro.

O soldado fez o sinal da cruz, agradeceu e, afastando a xícara, se pôs de pé.

- Agradeço muito, Mikail por me receber tão bem, satisfazendo ao mesmo tempo meu corpo e minha alma.

- Estou sempre ao seu dispor. Venha sempre que quiser, tenho prazer em recebê-lo.

- Quando Stepanovitch saiu, Mikail terminou seu chá e voltou a se sentar junto à janela para trabalhar.

Enquanto costurava, espiava pela janela pensando em tudo o que tinha lido, em tudo o que Jesus dissera.

Passaram dois soldados; um calçava botas do Governo e o outro botas dele mesmo. Depois passou um nobre de galochas e, em seguida, um padeiro carregando um cesto.

Apareceu uma mulher em meias de lã e sapatos de camponesa. Passou em frente à janela e encostou-se à parede. Através da vidraça, Mikail olhou para aquela desconhecida com uma criança nos braços, de costas para o vento. Em vão procurava abrigar a criança, pois não tinha com que envolvê-la. Apesar do frio, a mulher usava roupas de verão, velhas e gastas.

Junto à janela, Mikail ouvia o choro do bebê e via os inúteis esforços da mãe para consolá-la. Levantou-se, abriu a porta e, indo até a rua, gritou:

- Ei, ei, você! Está ouvindo?

A mulher voltou-se para ele.

- Não fique aí nesse frio com a criança. Entre aqui. Pode aquecê-lo melhor aqui dentro. Entre...

A mulher olhou, surpresa, aquele velho de avental e óculos na ponta do nariz que lhe fazia sinais para entrar, mas aceitou.

Desceram os degraus até o pequeno cômodo.

- Venha, sente-se aqui, junto ao fogão. Venha se aquecer para dar de mamar ao menino.

- Não tenho mais leite. Não como nada desde a manhã - disse a mulher, dando mesmo assim o peito à criança.

O sapateiro olhou para o outro lado. Pegou na mesa um pedaço de pão e uma tigela, foi ao fogão e encheu a tigela de sopa. Vendo que o mingau ainda não estava bem cozido, cobriu a mesa com uma toalha, pôs os talheres e serviu só a sopa e o pão.

- Sente-se, venha comer. Eu cuido do menino. Também já tive filhos, sei lidar com crianças.

A mulher fez o sinal-da-cruz, sentou-se à mesa e começou a comer. Mikail deitou o menino na cama e sentou-se ao lado. O menino chorava e Mikail fingiu ameaçá-lo, levando o dedo ao rostinho, mas sem tocá-lo, porque sua mão estava suja de alcatrão. Atento ao movimento do dedo, o bebê parou de chorar e começou a rir.

Enquanto comia, a mulher contou de onde vinha.

- Meu marido é soldado, mas faz oito meses que o levaram e não tenho notícias dele. Trabalhei como cozinheira, mas depois que o bebê nasceu não me quiseram mais. Não trabalho há três meses; já gastei tudo o que tinha. Tentei ser ama-de-leite, mas dizem que estou muito magra e não me aceitam. Fui à casa de uma mulher, onde minha filha trabalha, e me prometeram trabalho, mas só daqui a uma semana... Ela mora muito longe. Fiquei muito cansada e o bebê também. Minha patroa teve pena de mim e nos deixa dormir na casa dela, graças a Deus. Senão, não sei o que seria de nós.

- Não tem uma roupa mais quente? - perguntou o sapateiro.

- Não. Empenhei meu último xale de lã ontem, por vinte copeques.

A mulher foi até a cama pegar a criança. Mikail procurou entre as roupas penduradas na parede e encontrou um velho manto de lã.

- Tome. Está bem usado, mas serve para aquecer.

A mulher olhou para o agasalho, olhou para o sapateiro e, pegando o presente, desatou a chorar. Comovido, Mikail abaixou-se e pegou um bauzinho que estava sob a cama. Remexeu no baú e sentou-se diante da mulher.

- Deus lhe pague - ela disse. - Foi Ele quem me trouxe à sua janela. Não estava tão frio quando saí, mas agora meu filho estava quase congelando. Foi Deus que fez você olhar pela janela e ter compaixão de nós.

Mikail sorriu.

- Sim, foi Deus. Não olhei por acaso - e Mikail contou à mulher que ouvira a voz dizer que Jesus viria à sua casa.

- Tudo pode acontecer - disse ela, levantando-se.

Pegou o manto, enrolou o menino e agradeceu, inclinando-se diante do sapateiro.

- Tome isso, em nome de Deus - ele disse, passando à mão dela uma moeda de vinte copeques. - É para resgatar seu xale.

A mulher fez o sinal-da-cruz. Mikail imitou o gesto e acompanhou-a até a porta.

Depois da sopa, Mikail voltou ao trabalho. Enquanto manejava a sovela, espiava a rua. A cada vulto que se aproximava, levantava os olhos para ver quem era. Alguns eram conhecidos, outros não.

A certa altura, uma velha vendedora de maçãs parou em frente à janela. Restavam poucas maçãs na cesta; certamente já vendera a maior parte. Ela carregava nas costas um saco de gravetos que devia ter apanhado perto de alguma carvoaria e agora levava para casa. Parecia que o ombro lhe doía ao peso do saco e queria trocá-lo de lado. Deixou a cesta no vão da janela e pôs o saco no chão. Enquanto se ocupava em ajeitar os gravetos dentro do saco, apareceu um garoto e roubou uma das maçãs. Antes que conseguisse fugir, a velha agarrou-o pela manga. Ele se debatia, tentando escapar, mas a velha arrancou-lhe o gorro e puxou seus cabelos. O garoto gritava e a velha estava furiosa.

Sem perder tempo em fincar a sovela, Mikail largou-a no chão e correu para a porta. Subiu os degraus aos tropeções, seus óculos caíram na correria e ele chegou à rua. A mulher batia no menino e puxava seus cabelos, ameaçando entregá-lo à polícia. O garoto continuava a se debater, negando o furto da maçã.

- Não tirei nada! Por que está me batendo? Me solte!

- Mikail separou os dois, segurou a mão do menino e disse:

- Solte-o. Perdoe o menino.

- Perdoar? Ele nunca vai se esquecer de mim. Vou levá-lo à polícia agora mesmo! Ladrão!

- Por favor, solte o menino. Ele não vai mais fazer isso. Deixe-o, em nome de Cristo.

A velha soltou o garoto. Antes que ele saísse correndo, Mikail segurou-o.

- Peça perdão e nunca mais faça isso. Eu vi você pegando a maçã.

O menino começou a chorar e pediu perdão, soluçando.

- Não chore. Tome, eu dou essa maçã para você - disse Mikail, tirando uma maçã da cesta e entregando-a ao menino.

- Está mimando demais esse ladrãozinho - disse a velha. - Seria melhor dar-lhe uma surra para ele se lembrar a semana inteira.

- Nós pensamos assim, mas Deus não nos julga assim. Se é certo surrar esse menino por causa de uma maçã, o que Deus terá que fazer conosco por causa de nossos pecados?

A velha ficou calada. Então Mikail contou-lhe a parábola do Senhor que perdoou a dívida do servo e o mesmo servo quis esganar um devedor. A velha e o menino ouviam, quietos.

- Deus nos ensina a perdoar - disse Mikail - para sermos perdoados. Perdoar a todos, e mais ainda a um garoto sem juízo.

A velha concordou com um aceno de cabeça e suspirou.

- É verdade - ela disse - mas eles estão muito mal-educados.

- Então nós, mais velhos, devemos educá-los melhor.

- Eu sempre achei - ela concordou. - Eu tive sete filhos, e só resta uma filha - e a velha contou que morava com a filha e os netos. - Já estou velha e fraca, mas trabalho muito para cuidar dos meus netos. São crianças lindas! Tão carinhosos comigo! Aksiutka, então, só quer ficar comigo. É só “vovozinha, vovozinhaquerida” - enquanto falava ia ficando comovida.

- Claro que foi só criancice - ela disse, referindo-se ao garoto. - Vai com Deus, meu filho.

Estava prestes a pôr o saco no ombro quando o menino disse:

- Deixe-me levar o saco para a senhora. Também vou para esse lado.

A velha aceitou e se foram. Ela nem se lembrou de cobrar a maçã a Mikail. O sapateiro ficou olhando os dois se afastarem, conversando. Entrou em casa, encontrou os óculos caídos na escada, inteiros, pegou a sovela e voltou a trabalhar. Logo não havia mais luz suficiente para costurar e Mikail viu passar na rua o acendedor de lampiões. “Preciso acender a lâmpada”, pensou. Encheu de óleo o candeeiro, pendurou-0 e continuou o serviço. Terminou uma bota, examinou-a e aprovou o trabalho. Guardou as ferramentas, arrumou os cordões e sovelas, varreu os retalhos e colocou a lâmpada na mesa. Pegou o Evangelho na prateleira. Pretendia continuar onde tinha parado na véspera, mas o livro se abriu em outra página. O sonho voltou-lhe à mente e julgou ouvir passos no canto mais escuro, mas não distinguia bem quem eram. Uma voz sussurrou em seu ouvido:

- Mikail, Mikail, não me conhece?

- Quem é você? - ele murmurou.

- Sou eu - disse a voz. - Sou eu mesmo.
E Stepanovitch saiu sorrindo do canto escuro e desapareceu, desfazendo-se numa nuvem.

- Sou eu - disse a voz.
E da penumbra saiu sorrindo a mulher carregando a criança, que também sorria, e desapareceram.

- Sou eu - disse a voz.
E Surgiram a velha e o garoto com uma maçã na mão e desapareceram sorrindo.

O sapateiro sentiu uma intensa alegria no coração. Fez o sinal-da-cruz, pôs os óculos e começou a ler o Evangelho na página aberta.

“Tive fome e deste-me de comer; tive sede e deste-me de beber; eu era estrangeiro e me acolheste.” Mt 25.25

No final da página, estava escrito:

“O que tiverdes feito pelo menor dos meus irmãos, é a mim que fizestes.” Mt 25.40


Mikail compreendeu então que seu sonho fora verdadeiro. O Salvador viera à sua casa naquele dia e ele o havia acolhido. 


Liev Tolstói

terça-feira, 8 de julho de 2014

A VIDA DEVOCIONAL por Osmar Ludovico

Um dos pilares da experiência cristã é a vida devocional, isto é, o cultivo de uma relação de intimidade com Deus através da leitura bíblica e da oração. Na recomendação de Jesus Cristo, a vida devocional acontece no quarto de portas fechadas, no secreto, longe do público e das distrações.

A vida devocional é um privilégio extraordinário para os que creem. Na antiga aliança, só o sumo sacerdote, uma vez por ano, tinha acesso à presença de Deus no Santo dos Santos, no templo de Jerusalém. Porém, no momento em que Jesus Cristo morre na cruz, o Evangelho relata que o véu que dava acesso ao Senhor foi rasgado de alto a baixo – e lemos no livro de Hebreus que, agora, podemos entrar confiadamente na sala do trono pelo novo e vivo caminho no sangue de Cristo.

Deus não está mais no templo de Jerusalém, edificação feita por mãos humanas. Agora, ele habita no coração do homem e da mulher que nele creem e, assim, nosso corpo se tornou o templo do Espírito Santo. Este é o mistério de Cristo em nós; assim foi abolido o sacerdócio como privilégio dos levitas e, no Filho de Deus, o sacerdócio se tornou universal e inclui todos os crentes. Apesar disso, o que temos visto na Igreja é um retrocesso, pois o lugar do encontro com Deus se tornou o templo no domingo; a adoração é intermediada pela banda e pelo dirigente do louvor, e Deus fala através de pregadores ungidos. Além disso, levamos nossas orações para intercessores que, supostamente, têm poder.

O resultado é uma geração de crentes que dependem de intermediários na sua relação com Deus. Ao invés da leitura bíblica pessoal, ouvimos sermões, e no lugar da oração pessoal, aquela que se desnuda diante do Senhor, fazemos nossos pedidos na reunião de oração. É por isso que existem tão pouco santos e profetas entre nós, e tantos crentes imaturos e instáveis. Santo não é aquele que não peca mais, mas o que sabe que é um grande pecador e vive quebrantado e na dependência do Espírito Santo. E profeta não é aquele que adivinha o futuro, mas denuncia o mal e anuncia o juízo, sem preocupação em agradar aos outros.

A vida devocional ficou em segundo plano, e sem uma relação pessoal com Deus a ênfase recai na vida comunitária, no programa, no culto – em parte porque nos tornamos pessoas inquietas e agitadas que não conseguem parar, e em parte porque achamos que Deus só fala conosco através de pastores. Mas também negligenciamos a vida devocional porque achamos improdutiva e perda de tempo e buscamos experiências espirituais eufóricas e entregamo-nos ao ativismo religioso.

Sabemos que Deus habita o mais alto e santo lugar nos céus, mas também habita o coração do contrito e do abatido de espírito. Procuramos o Altíssimo nos mais altos céus – mas ele está muito mais perto de nós, no nosso coração. Encontramos o Senhor mais facilmente quando descemos, e não quando subimos; descemos ao nosso coração para encontrá-lo por trás da nossa maldade e da nossa agitação. A casa do Pai é o nosso próprio coração: por isso, voltar para à casa do Pai é retornar ao nosso próprio coração. Ali, ouvimos sua palavra e lhe respondemos com nossas orações. Esta é uma descrição da vida devocional. Em outras palavras, podemos dizer que é o cultivo de uma amizade com Deus no recôndito do nosso coração. Nossa vida se torna, então, um caminho com Cristo até Cristo, um caminho em direção ao nosso próprio coração, onde o Senhor nos aguarda apesar das nossas agitações e preocupações. Aquietamo-nos para encontrá-lo e, quando o encontramos, estamos prontos para encontrar outros.

Sabemos da importância dos frutos na vida cristã: fruto de arrependimento, fruto do Espírito e fruto de boas obras. Todavia, a parte mais importante de uma árvore é a raiz. A árvore pode ter um tronco magnífico e folhas viçosas, mas se a raiz estiver afetada, seus frutos serão ruins e ela pode até morrer. Pois a vida devocional é raiz que precisa estar coberta, no escuro, nas profundezas. Se ela é saudável, alimentando-se da seiva viva e bebendo dos mananciais de águas puras, então não precisamos nos preocupar com os frutos – eles, certamente, virão e serão bons.

Precisamos resgatar o ensino e a prática do sacerdócio universal dos crentes e o vinculo de intimidade com Deus através da leitura bíblica e da oração no secreto.

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