Fui a uma “igreja” singular recentemente, que consegue atrair milhões de membros devotos toda as semanas, sem ter sede denominacional nem funcionários contratados. O nome é Alcoólicos Anônimos. Fui a convite de um amigo, que me confessara, pouco tempo antes, seu problema com a bebida. Ele me disse:
- Venha comigo, e verá uma amostra de como deve ter sido Igreja primitiva.
À meia–noite de uma segunda feira, entrei em uma casa caindo aos pedaços, que já abrigara seis sessões naquele dia. Nuvens de fumaça pairavam no ar como gás lacrimogêneo. Não passou muito tempo antes que eu percebesse o que meu amigo queria dizer com sua alusão à Igreja primitiva. Um político muito conhecido e vários milionários proeminentes se misturavam com desempregados desanimados e garotos que colocavam ban-aids nos braços para esconder as marcas das agulhas. O “momento de compartilhar” foi semelhante as descrições de grupos de terapia ideais que encontramos nos livros de cursos de Psicologia.
As pessoas ouviam em compaixão, respondiam com ardor e abraçavam-se ao final. As apresentações eram mais ou menos assim:
- Oi, sou o Tom, e sou dependente de álcool e drogas.
Imediatamente todos gritavam em uníssono, como um coral do teatro grego:
- Oi, Tom!
Cada participante da reunião deu o relatório de seu progresso pessoal na batalha contra a dependência. Cartazes com frases simpáticas – “Um dia de cada vez”, Você consegue” – enfeitavam as paredes desbotadas da sala. Meu amigo acredita que esse arcaísmos revelam outra semelhança com a Igreja primitiva. A maior parte da sabedoria do AA é passada de uma pessoa para outra pela tradição oral, que vem desde a fundação da entidade, há mais de cinqüenta anos. Ninguém usa muito as publicações atualizadas do AA e nem seus artigos de relações públicas. Em vez disso, confiam principalmente em um velho embolorado com o título prosaico: O Grande Livro Azul dos Alcoólicos Anônimos, que conta a história dos primeiros membros, em um estilo pomposo, parecido com o da Bíblia.
O AA não possui qualquer propriedade, não tem uma sede com luxos como mala direta e centro de mídia, não há uma equipe de consultores bem pagos e nem conselheiros de investimentos a cruzar o país de avião. Os fundadores do movimento estabeleceram garantias que acabariam com qualquer iniciativa para implantar a burocracia. Acreditavam em que o programa só teria sucesso se permanecesse no nível mais básico e íntimo: um alcoólico dedicando sua vida a ajudar outro. Mesmo assim o AA mostra-se tão eficaz que mais 250 organizações, de Chocólatras Anônimos a grupos de pacientes de câncer, surgiram como um imitação consciente de sua técnica.
Os muitos paralelos com a Igreja primitiva não são meras coincidências históricas. Os fundadores cristãos insistiram em que a dependência de Deus deveria ser uma parte obrigatória do programa. Na noite em que participei da reunião, todos na sala repetiram em voz alta os dozes princípios, que reconhecem total dependência de Deus para perdão e força (os membros mais agnósticos podem substituir pelo eufemismo “Poder do Alto”, mas depois de algum tempo isso começa a soar tão vazio que eles geralmente acabam passando para Deus). Durante os momentos de compartilhar, algumas pessoas usaram o nome de Deus em uma série de profanidades, e na sentença seguinte agradeciam a Ele por ajudá-las a atravessar mais uma semana.
Meu amigo admite abertamente que o AA tomou o lugar da igreja na vida dele, e isso às vezes o perturba. Ele denomina a situação de “a questão Cristológica” do AA. E diz:
O AA não adota uma teologia da qual possa falar. Raramente se menciona Cristo. Os grupos tomaram emprestada a sociologia da igreja, bem como algumas das palavras e dos conceitos, mas não há doutrina subjacente. Sinto falta das doutrinas, mas em primeiro lugar estou tentando sobreviver, e o AA me ajuda muito mais nesta luta do que qualquer igreja local.
A igreja – e é possível avistar muitas torres através das janelas do prédio onde o grupo dos AA se reúne – parece irrelevante, enfadonha e sem substância para meu amigo. Outros no grupo explicam sua resistência à igreja relatando histórias de rejeição, julgamento e sentimento de culpa. Uma igreja local é o último lugar em que se levantariam para declarar que são alcoólicos e dependentes de drogas. Ninguém os saudaria com alegria, como nas reuniões do AA.
Meu amigo acredita que um dia acabará voltando para a igreja, já que não abandonou sua fé. Ele afirma que, na verdade, o envolvimento no AA o ajudou a solucionar alguns dos paradoxos mais difíceis do cristianismo. Tomemos como exemplo o debate livre–arbítrio e determinismo: como alguém pode aceitar toda a responsabilidade por suas ações, quando sabe que os antecedentes familiares, desequilíbrios hormonais e as forças sobrenaturais do mal contribuíram para seu comportamento? Uma das personagens de William Faulkner expressou-se assim:“Não vou fazer. Mas não consigo evitar”.
O AA é bem menos ambíguo: todo participante tem que reconhecer a responsabilidade total e completa por todo seu comportamento, até mesmo pelo que acontece durante um estupor alcoólico ou um blecaute (uma espécie de limbo, no qual o alcoólico continua a agir, mas com amnésia, sem percepção consciente). É proibido racionalizar.
Meu amigo prossegue: O AA me ajudou também a aceitar a noção do pecado original. Na verdade, embora muitos cristãos desprezem esta doutrina, o pecado original combina perfeitamente com as pessoas que freqüentam o AA. Expressamos esta verdade cada vez que nos apresentamos, dizendo que somos alcoólicos. Ninguém se esquiva dizendo que era alcoólico.
Para este meu amigo, a imersão nos alcoólicos Anônimos significou encontrar a Salvação em seu sentido mais literal. Sabe que uma escorregada poderia causar, ou melhor, causaria com certeza sua morte prematura. Mais de uma vez o companheiro dele dentro do AA atendeu seus chamados às 4hs da madrugada, indo encontrá-lo encurvado em um restaurante escuro, escrevendo vezes sem conta em um caderno, como um garoto sendo castigado na escola: “Deus, ajuda-me a atravessar os próximos cinco minutos.” Hoje ele aproxima-se de seu quinto aniversário de sobriedade, um marco importante de acordo com a avaliação do AA. E mesmo assim sabe que 50% das pessoas que vencem esta etapa acabam caindo de novo.
Saí impressionado da “igreja da meia – noite”, mas ainda me perguntando por que o AA atende a determinadas necessidades que a igreja local não consegue atender, ou pela menos não conseguiu, no caso do meu amigo. Pedi-lhe que apontasse a qualidade mais importante ausente na igreja e presente no AA. Ele olhou para sua xícara de café por um longo tempo, parecia estar assistindo ao líquido esfriar. Esperei ouvir uma palavra como amor, aceitação ou, por conhecê-lo bem, talvez ausência de institucionalismo. Em lugar disto, ele disse, bem baixo, uma única palavra: dependência.
E explicou: Nenhum de nós é capaz de prosseguir só, e não foi para isto que Jesus veio? Ainda assim, a maioria das pessoas na igreja apresenta um ar de satisfação consigo mesmas, com piedade ou superioridade. Não sinto que, conscientemente, elas se apóiem em Deus ou umas nas outras. Parece que a vida delas está em ordem. Um alcoólico se sente inferior e incompleto na igreja.
Ficou em silêncio um pouco, até que abriu um sorriso em seu rosto. E concluiu dizendo: É engraçado. O que mais odeio em mim, meu alcoolismo, é exatamente o que Deus usou para me trazer de volta até Ele. Por ser alcoólico sei que não sobrevivo sem Deus. Talvez seja este o valor redentor dos alcoólicos. Talvez Deus nos esteja chamado a ensinar aos santos o que significa depender dEle e de sua comunidade na Terra.
Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim cumpram a lei de Cristo. Gálatas 6.2